Wolf

A literatura política de matriz estadunidense tenta nos convencer da existência de dois tipos básicos de terrorismo: o que decorre de ações diretas de grupos extremistas e aquela praticada por psicopata ou por indivíduo mentalmente perturbado que agiria como lobo solitário (Lone Wolf).

Questionando essa dicotomia o cientista político gaúcho Jorge Branco publicou no Brasil de Fato um pungente artigo, intitulado Lobos Não São Solitários, demonstrando que os terroristas brasileiros que invadem escolas para assassinar crianças seguem um perfil bastante definido: são “jovens, brancos, professam o racismo, a misoginia e o pensamento de extrema direita”. Reproduzo o excelente artigo na íntegra:

“Segundo páginas escolares de Internet, acessíveis a qualquer leigo na matéria como eu, o lobo é um animal gregário, que leva sua vida em bandos, conhecidos como alcateias. Os grupos variam conforme as espécies, circunstâncias, disponibilidade de alimentos e territórios onde habitam. Ainda, segundo o que já se conhece, há especializações de trabalho no interior das alcateias.

A cobertura jornalística da última e dilacerante tragédia – o assassinato de crianças numa creche na cidade de Blumenau, em Santa Catarina, neste dia 05 de abril – estabeleceu vínculos com outros atentados homicidas. Miseravelmente, a grande maioria em escolas tendo como vítimas jovens, adolescentes e crianças.

Segundo matéria da BBC News Brasil, entre outubro 2002 e março de 2023 haviam sido executados 22 ataques a escolas no país. Com esta nova tragédia, são 23 ataques terroristas homicidas. Contudo o dado mais alarmante é que mais da metade, exatamente 12, foram executados no ano passado e neste ano. O que indica haver alguma forte motivação para estes assassinatos, diferente daquelas dos anos anteriores. Na mesma matéria, outra fonte aponta para números maiores ainda e mais aterradores ainda. Seriam 34 ataques entre 2012 e 2022, sendo 22 somente neste último ano.

Fica também estarrecedoramente exposto que não se tratam de ataques solitários, como tem circulado em algumas matérias jornalísticas, chegando algumas delas a caracterizar os criminosos atacantes como “lobos solitários”. Decididamente não são.

As evidências apontam que estes terroristas agem e discutem a ação em grupo, através de uma rede de incentivo e colaboração escondida nas profundezas e labirintos das redes sociais e Internet. Se incentivam mutuamente, copiam atitudes, compartilham crenças e valores. Discutem métodos e táticas para a execução dos massacres, avaliando sua eficácia, o que significa perseguirem o aperfeiçoamento das técnicas utilizadas, em uma espécie de debriefing remoto e secreto.

O que tem sido tornado público sobre esses atentados homicidas demonstra uma convergência de perfis entre esses homicidas. Os atacantes são jovens, brancos, professam o racismo, a misoginia e o pensamento de extrema direita. Refutam a democracia, as leis e suas instituições.

Não são lobos, tampouco solitários. São missionários armados ideologicamente, pela emergência do ódio e da violência como política e método. Ideologicamente envolvidos em uma guerra pela eternidade, nas palavras de Teitelbaum.

A emergência das ideias fascistas e neonazistas, e a destreza e conforto com que circulam nos tempos atuais, aparelharam esses terroristas com as armas da convicção sem conhecimento e da sociopatia. Gerando um ativismo agressivo e fora das regras. Uma alquimia que, em outros tempos e outras circunstâncias, já havia se mostrado desastrosa.

É preciso desenvolver a cultura da paz e da tolerância. Reprimir não só a violência quando manifesta, mas também a sua apologia, a proliferação de armas e o incentivo ao ódio político e social. Submeter à Constituição e as leis os líderes desse submundo.”

Um submundo que, segundo percepção também presente no clássico Quem Tem Medo de Virgínia Woolf, muitos trazem dentro de si com a ferocidade de lobos solitários e que as revelam em suas relações sociais, de matilha, em brutais rituais de expurgo e de resistência. Essa referência à autora britânica Adeline Virginia Woolf, nascida Adeline Virginia Stephen, por associação de ideias e de sonoridades, nos remete a outros lobos, na literatura do comunista Hermann Hesse do Lobo da Estepe (Der Steppenwolf), e na música da banda de rock por ele inspirada que criou a também clássica Born To Be Wild, verdadeiro hino da rebeldia juvenil, que nos anos setenta do século passado criticava o “sistema” e seus instrumentos belicistas, do armamentismo ao moralismo evangelizador e hipócrita e que hoje pode estar servindo a perturbados mentais da extrema-direita em várias partes do mundo e também no Brasil. Nas motociatas financiadas, em parte, pelo cartão corporativo da presidência da república durante a campanha de 2018, essa música serviu muitas vezes como fundo musical, para decepção de minha geração.

Finda esta pequena digressão, constato que nosso, comedido e prudente, Jorge Branco, propositadamente, omite uma característica essencial dos assassinatos praticados por terroristas de extrema-direita nas escolas brasileiras: todos os assassinos, além de “jovens, brancos, [que] professam o racismo, a misoginia e o pensamento de extrema direita”, eram também cristãos, sincera e profundamente cristãos. O cristianismo em excesso é uma das características do fascismo brasileiro, que se revelou a partir das mobilizações de 2013 articulando o golpe de 2016 e que fragilizou o estado de direito com o lavajatismo elegendo Bolsonaro. Causa e consequência.

Não seria de bom tom perquirir-se em plena “semana santa” se o fascismo brasileiro que inspira esses assassinatos praticados nas escolas e creches por fundamentalistas cristãos decorreriam de sua essência ou do seu excesso. O que importa registrar é o componente místico, missionário, fundamentalista, presente em todos esses atentados terroristas mundo a fora, praticados por muçulmanos, por judeus ou por cristãos, fundadam-se nas certezas absolutistas de cada um dos três grandes monoteísmos, em nome de “reformas” em direção ao passado idealizado, das tradições e das instituições de outrora, ameaçadas pela modernidade em seu mais amplo sentido. Não é diferente no Brasil. O fascismo cristão bolsonarista também é profundamente “reformador” e “contra-tudo-isso-que-está-aí”,

Os grupos de extrema-direita que atraem esses lobos desgarrados, que constituem essas pessoas mentalmente perturbadas em alcatéias, se utilizam da irracionalidade intrínseca ao sagrado e ao mistério, que só a extremada fé possibilita, para potencializar o radicalismo antissistêmico e a apropriação de símbolos, estéticas, canções, e até de gêneros musicais, que, há meio século, representavam o pacifismo e a solidariedade, bandeiras das esquerdas, para embalar devaneios da extrema-direita fascista e cristã, armamentista, do quais os assassinatos nas escolas são detalhes ou meras consequências.

Quando percebemos que “nunca falha”, que todos os terroristas e assassinos, ou familiares de crianças que cometem atentados ou violência contra vulneráveis no Brasil têm em comum a devoção ao bolsonarismo estamos começando a compreender que “o problema” não está na ausência de segurança armada nas escolas, mas na ideologia que serve de substrato para crescimento desses grupos fundamentalistas, cristãos e fascistas, individualistas e meritocêntricos, na sociedade brasileira contemporânea.

A geração de brasileiros e brasileiras que entoou a canção do Steppenwolf, que nasceu para ser selvagem, nesta semana dedicada às penitências indultadoras, talvez possa aproveitar seus versos para refletir não sobre o místico, mas sobre as relações sociais concretas em que estamos imersos, sobre o “não falha nunca” e sobre as consequências objetivas da maneira bolsonara de existir em sociedade enquanto cantarola sua mais icônica música.

Boa Páscoa a todos.

Xixo, 7 de abril de 2023

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