
“Senhoras e Senhores: obrigado. Muito obrigado pelo honroso título que me conferem. Eu me pergunto se o mereci. Talvez sim, não, certamente, por qualquer feito, ou qualidade minha. Sim, como consolação de meus muitos fracassos. Fracassei como antropólogo no propósito mais generoso que me propus: salvar os índios do Brasil.
Sim, simplesmente salvá-los. Isto foi o que quis. Isto é o que tento há trinta anos. Sem êxito. Salvá-los das atrocidades que conduziram tantos povos indígenas ao extermínio: mais de 80, sobre um total de 230, neste século.
Salvá-los da expropriação de suas terras, da contaminação de suas águas e da dizimação da fauna e da flora que compunham o quadro de vida dentro do qual eles sabiam viver; mas cujo saqueio, desapropriação e corrupção convertem a eles também em mortos viventes.
Salvá-los da amargura e do desengano, levados às suas aldeias, em nome da civilização, pelos missionários, pelos protetores oficiais, pelos cientistas e, sobretudo, pelos fazendeiros, que de mil modos lhes negam o mais elementar dos direitos: o de serem e permanecerem tal qual eles são. Fracassei também na realização de minha principal meta como Ministro da Educação: a de pôr em marcha um programa educacional que permitisse escolarizar todas as crianças brasileiras.
Elas não foram escolarizadas. Menos da metade das nossas crianças completam quatro séries de estudos primários. Anualmente, alcançam os 18 anos de idade, no Brasil, 500 mil rapazes e moças analfabetos. Fracassei, por igual, nos dois objetivos maiores que me propus como político e como homem de governo: o de realizar a Reforma Agrária e de pôr sob o controle do Estado o capital estrangeiro de caráter mais aventureiro e voraz.
A Reforma Agrária que queríamos consistiria em entregar uma parcela da imensidade de terras de meu país – mais de 8 milhões de quilômetros quadrados – à nossa não menos imensa população – cerca de 120 milhões de habitantes – na forma de propriedades familiares de 20 a 50 hectares. O que se fez, efetivamente, nestes 15 anos de governo militar, foi estender mais o latifúndio sobre o país.
Agora é a Floresta Amazônica que eles loteiam em glebas de 500 mil,de um milhão, de um milhão e meio de hectares, como propriedades gigantescas às quais o trabalhador brasileiro continua atado em condições de servidão.
Em lugar de submeter as empresas multinacionais ao controle do Estado, o que se fez, no Brasil, foi entregar o Estado às multinacionais. Nós, latino-americanos, estamos aprendendo nos últimos anos que muito pior do que ser República de Bananas é ser República das Multinacionais. Com efeito, as empresas produtoras de bananas e abacaxis do Caribe produziam dólares para os ricos, pobreza para os pobres e ditaduras para todos.
Mas sempre produziam dólares. As economias das Repúblicas que as multinacionais estão montando no hemisfério inferior do planeta, não produzindo dólares, exigem um endividamento crescente de cada país – O Brasil já deve cerca de 50 bilhões de dólares.
Mas, como as do Caribe, produzem fartamente ditadura, repressão, violências e tortura. Outro fracasso meu, nosso, que me dói especialmente rememorar neste augusto recinto da Sorbonne – mãe da universidade – foi o de Reitor da Universidade de Brasília.
Tentamos lá, conjuntamente com o melhor da intelectualidade brasileira, e tentamos em vão, dar à nova capital do Brasil a universidade necessária ao desenvolvimento nacional autônomo.
Ousamos ali e esta foi a maior façanha de minha geração repensar radicalmente a universidade, como instituição central da civilização, com o objetivo de refazê-Ia desde as bases. Refazê-Ia para que, ao invés de ser mais uma universidade-fruto, reflexo do desenvolvimento social e cultural prévio da sociedade que cria e mantém, fosse uma universidade-semente, destinada a cumprir a função inversa, de promover o desenvolvimento.
Nosso propósito era plantar na cidade-capital a sede da consciência crítica brasileira que para lá convocasse todo o saber humano e todo o élan revolucionário, para a única missão que realmente importa ao intelectual dos povos que fracassaram na história: a de expressar suas potencialidades por uma civilização própria.
O que pedíamos à Universidade de Brasilia é que se organizasse para atuar como um acelerador da história, que nos ajudasse a superar o círculo vicioso do subdesenvolvimento, que quanto mais progride mais gera dependência e subdesenvolvimento.
Desses fracassos da minha vida inteira, que são os únicos orgulhos que eu tenho dela, eu me sinto compensado pelo título que a Universidade de Paris VII me confere aqui, agora.
Compensado e estimulado a retomar minha luta contra o genocídio e o etnocídio das populações indígenas; e contra todos os que querem manter o povo brasileiro atado ao atraso e à dependência. Obrigado. Muito obrigado.”
Darcy Ribeiro